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23/10/2015
A mão invisível do comunismo


Antonio Luiz Caldas Junior

Preâmbulo

Adam Smith, lá pelos idos de 1776, desenvolveu no livro A Riqueza das Nações, o conhecido conceito de Mão Invisível, com o intuito de entender o funcionamento da economia capitalista: "O comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse, é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade." A mão invisível do mercado, a mão invisível do capitalismo.

Depois de muito pensar em minha vida, posso hoje afirmar que não apenas o mercado é regido por uma mão invisível. Refletindo sobre como abracei a ideologia socialista, confirmo a existência de outra mão invisível: aquela que nos encaminha para o correto e glorioso caminho da solidariedade humana e do inconformismo diante das mazelas sociais. Veredas que nos incitam a lutar “pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”, nas palavras da querida heroína do povo brasileiro e da humanidade Olga Benário, em sua carta de despedida, escrita à véspera de sua morte, em abril de 1942, no campo de extermínio nazista de Bernburg. A mão invisível do comunismo.

Já escrevi, em outra oportunidade, sobre acautelado processo transformador da mente de um jovem, filho de pequeno comerciante e uma linda portuguesinha, empregada doméstica, católicos e politicamente liberais (ou conservadores?). Ter nascido em Santos, que Jorge Amado chamara de Cidade Vermelha, já fora um bom começo, especialmente nas ebulidas décadas de 1950 e 60, vestíbulo do golpe civil-militar de 1964. Depois, os atribulados dias no Colégio Canadá e na Comunidade de Jovens Cristãos da Igreja São Judas Tadeu, a convivência com os familiares que se aventuravam na agitação do movimento estudantil das grandes cidades; as letras e os sons de meu reduto litero-fono-revolucionário: vitrolinha, pequena discoteca e a literatura socialista garimpada nos sebos de Santos e no mão a mão de textos de circulação clandestina.

Aos 16 anos, fizera uma incursão no mundo da saúde, trabalhando como um tipo de ajudante faz tudo em uma clínica veterinária: dava injeções, auxiliava cirurgias e, sobretudo, continha os assustados e agitados pacientes durante os exames clínicos feitos pelo consagrado médico veterinário santista Doutor Vicente Costa. Passados alguns meses, às vésperas de eu iniciar o cursinho vestibular, disse ele a meu pai, de quem era amigo: “Encaminhe seu filho para a medicina. É dedicado e interessado e os bichos são pouco para ele que gosta muito de gente e de política”. Neste tempo, era moda a realização de testes vocacionais para apontar caminhos acadêmicos a jovens, como eu, perdidos diante de profusas opções de cursos universitários. Após muitas planilhas, testes e entrevistas o dúbio veredito entre as ciências humanas e as biológicas. Pontificou o examinador: “Ele fará esta síntese na medicina”. Desta forma, pouco tempo depois de contemplar 18 anos, subi a serra para ingressar na renomada Escola Paulista de Medicina.

Esta trajetória objetiva de vida, aparentemente movida apenas pelo meu próprio interesse, era, de fato, levada pela mão invisível do comunismo. Em São Paulo e, depois, em Botucatu, a despeito dos tempos de intensa repressão política antipopular e anticomunista, me aproximei deliberada e organicamente dele. Aqui e ali, ao longo deste tortuoso caminho, o socialismo, ele próprio, manifestava sua vontade, evidenciando que esta aproximação também lhe agradava. E o fazia saber por meio de sinais e acontecimentos, autênticas revelações comunistas, algumas das quais relato a seguir. Casos verídicos que deliciosa e fantasticamente fazem parte de minha vida e da vida de meus queridos filhos: Líbero, Camilo, Edgard, Heitor, Pedro e Gabriel.

 

Uma viagem a Leningrado

Corria o ano de 1972. Estudante de medicina, realizava estágio voluntário na disciplina de Parasitologia, colaborando em pesquisas sobre a doença de Chagas, terrível flagelo sanitário e social que atormentava o povo brasileiro, especialmente nas zonas rurais, em meio à miséria e às precaríssimas e provisórias condições de vida. A mando de meu orientador, um belo dia fui ao Instituto Biológico de São Paulo buscar uma gaiola de triatomídeos, os conhecidos e temidos barbeiros, transmissores da doença. Em minha companhia o colega de turma Gilberto Natalini, hoje vereador na cidade de São Paulo, já àquela época incansável lutador pelas causas sociais e pela democratização do país.

Atendeu-nos, uma renomada pesquisadora. Não obstante os evidentes sinais da idade avançada, expressos em seu corpo, tinha espírito jovial, e, em pouco tempo, as discussões sobre os barbeiros, a doença de Chagas e sua determinação social, deram lugar à acalorada digressão sobre a vida política do país, a ditadura, a repressão e os hercúleos desafios para sua superação. Palavras sussurradas, em tempos em que não apenas as paredes, mas a própria brisa tinham ouvidos.

Num determinado momento, a professora, manifestando seu persistente otimismo no futuro do país e o encantamento diante da juventude engajada na luta democrática, buscou em seus armários uma pequena caixa. Antes de abri-la nos falou de seu marido, já falecido, pesquisador como ela. Emotivamente relatou que, em 1933, estivera ele no XV Congresso Internacional de Fisiologia, realizado em Leningrado, na União Soviética. Evento de tal envergadura que fora presidido por Ivan Pavlov, consagrado cientista e prêmio Nobel de Medicina. Na caixa que tinha às mãos e cuidadosamente abria, repousavam as relíquias do congresso: dois convites para o coquetel de boas-vindas, impressos em russo e francês, e alguns cartões postais com ilustrações sobre a Revolução Russa. A professora, emocionada, nos confidenciou que seu esposo tinha um especial apreço por aquelas lembranças e num gesto surpreendente nos disse: “Levem este material com vocês e o guardem com muito carinho. Estou ficando muito velha e temo que com minha morte tudo isso caia em mãos erradas e se perca. Vejo que vocês zelarão por esta memória...”. Avidamente Gilberto e eu dividimos os materiais e viajamos em pensamento à Leningrado socialista de 1933. A mim couberam, além de um convite, lindíssimos postais de Josef Stalin e de uma cena da tomada do Palácio de Inverno, em 1917.

A mão invisível do comunismo me levou, naquela tarde, aparentemente à busca de insetos transmissores da doença de Chagas, mas na realidade, quem me aguardava no Instituto Biológico eram as vivas memórias da Revolução de Outubro e de gloriosos tempos da União Soviética.

 

Encontro casual

Sempre que pegava às mãos aqueles amarelados postais, me perguntava o que levaria uma foto de Stálin, percorrer tortuosos caminhos e chegar, 40 anos depois, às mãos de um jovem que se iniciava no socialismo científico? Esta dúvida se intensificou na cidade de Guarulhos, no ano de 1974.

Como era comum àquela época, os estudantes dos dois últimos anos dos cursos de medicina, cumpriam uma espécie de “estágio remunerado” em hospitais privados das grandes cidades. Sob supervisão médica, produziam uma síntese do aprender, ganhar o pão (ou mais precisamente o recheio dele) e servir de mão de obra barata. Quatro colegas de turma e eu nos revezávamos em plantões semanais no Instituto de Cirurgia e Traumatologia de Guarulhos, no Hospital Brasil, estabelecido em um bairro com o paradoxal nome de Jardim da Tranquilidade.

Uma vez por semana, acordava eu às quatro ou cinco horas da madrugada, para tomar duas conduções lotadas e chegar ao trabalho antes das sete. O movimento de pacientes era grande, em torno de cem, nas 12 horas de trabalho, que dividia com um médico ortopedista. Àquela hora, às sete, uma longa fila já se formava à porta do consultório, na sua grande maioria vítimas de rotineiros acidentes de trabalho do parque industrial que crescia ao toque acelerado do “milagre brasileiro”. Diante do elevado número de casos, o atendimento tinha que ser rápido: algumas palavras, um breve exame, diagnóstico e conduta; taylorismo médico, à semelhança das linhas de produção fabris que forneciam muitos dos pacientes-vítimas que atendíamos.

Numa certa manhã, encerrada uma destas quase impessoais consultas, o paciente que recebera alta e já se retirava, retornou. Vestido de modo muito simples, tinha forte sotaque nordestino e trazia nas linhas de expressão do rosto as marcas de uma vida sofrida. De meia idade, aparentava muito mais. Olhou-me nos olhos e falou:

- Doutor, quero agradecer a atenção que o senhor me deu. É a segunda vez que o senhor me atende e me tratou muito bem. Hoje, quando eu vinha para cá a pé, cedinho, achei uma coisa na rua e, apesar de eu achar que tem pouco valor, queria lhe dar de presente.

Não tive tempo sequer de lhe dizer que aquilo não era necessário, mas pensei que agradecer pode afinal fazer bem as pessoas. O paciente meteu a mão no bolso de seu surrado paletó, dele retirou um objeto e, pegando minha mão, nela o depositou.

- Achei na rua e peguei. Fique com ela...

Em minha mão repousava uma velha moeda acobreada, do tamanho de nossas atuais moedas de um real. Um lado expressava o valor que não recordo. No anverso a data dos anos 40 e uma efígie imponente: o camarada Stalin! Não podia acreditar! Quem seria aquele homem? Afinal eram tempos de absoluta repressão. Um policial? Um provocador? O semblante sereno e a expressão rude, mas inocente, diziam que não. Um meio abraço e ele se foi, quase anônimo, como chegou.

Passei aquele dia e passo até hoje, tentando imaginar como uma moeda de Stalin, abominado pelos capitalistas e, àquela altura, pelos então dirigentes da União Soviética, atravessara o mundo vindo a repousar numa rua da periferia de Guarulhos, e pelas mãos de homem comum, num ato de gratidão, chegar às minhas.

 

Dia da Bandeira

Os anos passaram e já me estabelecera em Botucatu. Docente da Faculdade de Medicina, buscara a síntese entre as ciências biológicas e sociais na área de Saúde Pública. Em 1982, embora já militasse no clandestino Partido Comunista do Brasil, jamais externava esta condição em razão de estritas normas de segurança pessoal e partidária. Afinal, a ditadura subsistia e os tempos de abertura não afastavam a possibilidade de um recrudescimento da repressão político-policial. Meus filhos, pequenos, não tinham obviamente qualquer relação explícita com este mundo clandestino. Sequer podiam entender o significado dos programas radiofônicos que eu acompanhava, quase diariamente, em um velho Transglobe da Philco. Fosse eu um policial do DOPS, certamente colocaria o Transglobe no rol das evidências para identificar comunistas. Afinal, que outro tipo de pessoa teria em casa um trambolho que sintonizava nove faixas de ondas curtas? Entre chiados e típicos prefixos sonoros era possível sintonizar a Rádios Tirana, Pequim, Havana, Moscou, e, minha preferida, a Rádio Paz e Progresso, também da URSS.

O mais velho de meus filhos, Líbero, já frequentava o pré-primário da Escola Dom Lúcio. Todos os dias, me mostrava orgulhosamente as atividades que fizera em classe e as tarefas para o dia subsequente. O ano terminava e aquele era o Dia da Bandeira, com direito a solenidade no pátio e os hinos de praxe. Em sala, a professora pedira a todos que em seus cadernos de desenho fizessem uma ilustração alusiva à data. Líbero também a fizera, com todo capricho, como era de costume. E agora mostrava sua obra-prima aos pais.

Sobre um mastro tremulava orgulhoso o pavilhão nacional, verde e amarelo. Mas a homenagem ao dia da bandeira ia além. A seu lado, outro mastro desfraldava imponente uma segunda bandeira, uma estranha bandeira vermelha. No canto superior esquerdo, desenhados, com a precisão que a coordenação motora permitia, uma foice e um martelo. Afinal, aquele era o Dia da Bandeira.

 

Um amigo de meu pai

Em 2002, os tempos de ditadura já haviam sido de longe superados. Meu filho mais novo, Gabriel, o sexto da prole exclusivamente masculina, abandonava as sombras do inato analfabetismo e adentrava à luz da linguagem escrita. Aprendi, com alguma dificuldade cognitiva, que as crianças não eram mais alfabetizadas, ou seja, não eram orientadas a simplesmente dominar a escrita e a leitura (imagino o que meu avô sentiria ao ler este “simplesmente”; ele que passou a vida lamentando ser analfabeto). O processo agora era chamado de letramento, o que significava elevar leitura e escrita à condição de prática social. Não bastava apropriar-se dos sinais gráficos. Era necessário submergir palavras e textos em seus contextos e circunstâncias, incorporando leitura e escrita à vida e ao cotidiano do aluno. À época, eu próprio, discípulo do cartesianismo da inesquecível Caminho Suave, nada sabia destes conceitos; imaginem o inocente Gabriel com seus cinco anos de idade.

A professora desdobrava-se em esforços para letrar seus pueris alunos. A proposta era imensamente desafiadora àquela altura: cada um deles deveria escrever um nome de pessoa iniciado por uma letra escolhida pela mestra: um “R”, um “J” e assim por diante. Ao Gabriel coube a tarefa de escrever, ali, em classe, sem ajuda dos pais, um nome iniciado pela letra “L”.

Um tempo passado e cada aluno leu o nome escolhido: Pedro, Maria, José...

- E você Gabriel? Que nome escreveu começando com a letra “L”? – indagou a professora

- Lênin! – respondeu meu resoluto filho.

A professora, espantada com a exótica originalidade, disse:

- Diferente este nome... Você conhece alguém que se chama assim?

- Eu conheço sim – confirmou Gabriel. É amigo do meu pai!

Em sua inocência, admirador de um majestoso pôster soviético em bico de pena que decorava meu escritório, Gabriel falou com o coração e de alguma forma sabia, sem que eu nunca o dissesse, que Lênin, Vladimir Ilyich Ulyanov, líder da Revolução Russa de 1917, era, de fato, meu guia e amigo, como fora e ainda é, por suas ideias, ensinamentos e exemplos, amigo de toda a humanidade.

Uma vez mais, a mão invisível do comunismo operou e fez uma nova revelação.

Antonio Luiz Caldas Junior, inverno de 2015.
Médico, professor da Faculdade de Medicina de Botucatu e Vice-Prefeito de Botucatu


Publicado em: Associação dos Poetas e Escritores de Botucatu,  Coletânea Literária 2015, Botucatu: APEB, 2015.




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